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sexta-feira, 6 de março de 2020

Política: Para lei escolar do Império, meninas tinham menos capacidade intelectual que meninos

No Senado, o Visconde de Cayru foi um dos defensores de que o currículo de matemática das garotas fosse o mais enxuto possível


Ricardo Westin/Agência Senado


A primeira grande lei educacional do Brasil, de 1827, determinava que, nas “escolas de primeiras letras” do Império, meninos e meninas estudassem separados e tivessem currículos diferentes. Em matemática, as garotas tinham menos lições do que os garotos. Enquanto eles aprendiam adição, subtração, multiplicação, divisão, números decimais, frações, proporções e geometria, elas não podiam ver nada além das quatro operações básicas. Nas aulas de português e religião, por outro lado, o conteúdo era o mesmo para meninos e meninas.

— A questão é se as meninas precisam de igual grau de ensino que os meninos. Tal não creio. Para elas, acho suficiente a nossa antiga regra: ler, escrever e contar. Não sejamos excêntricos e singulares. Deus deu barbas ao homem, não à mulher — discursou o senador Visconde de Cayru (BA).

A fala do Visconde de Cayru está guardada no Arquivo do Senado, em Brasília. Antes de ser assinada pelo imperador dom Pedro I e virar lei, a proposta que estruturava o ensino primário do Brasil foi discutida e votada na Câmara e no Senado. Os senadores travaram acalorados debates sobre qual seria o currículo mais apropriado para as crianças do sexo feminino nesse Brasil oitocentista.

No Senado, o Visconde de Cayru foi um dos defensores de que o currículo de matemática das garotas fosse o mais enxuto possível. Nas palavras dele, o “belo sexo” não tinha capacidade intelectual para ir muito longe:

— Sobre as contas, são bastantes [para as meninas] as quatro espécies, que não estão fora do seu alcance e lhes podem ser de constante uso na vida. O seu uso de razão é mui pouco desenvolvido para poderem entender e praticar operações ulteriores e mais difíceis de aritmética e geometria. Estou convencido de que é vão lutar contra a natureza.
Meninas formam fila em escola de São Paulo (foto: Escola Normal Caetano de Campos/CRE Mario Covas)
O senador Marquês de Caravelas (BA) fez uma argumentação semelhante:
— Em geral, as meninas não têm um desenvolvimento de raciocínio tão grande quanto os meninos, não prestam tanta atenção ao ensino. Parece que a sua mesma natureza repugna o trabalho árido e difícil e só abraça o deleitoso. Basta-lhes o saber ler, escrever e as quatro primeiras operações da aritmética. Se querem dar-lhes algumas prendas mais, ensinem-lhes a cantar e tocar, prendas que vão aumentar a sua beleza. O que importa é que elas sejam bem instruídas na economia da casa, para que o marido não se veja obrigado a entrar nos arranjos domésticos, distraindo-se dos seus negócios.

Concordando com os colegas, o senador Marquês de Maricá (RJ) chegou a ser irônico:

— Sou também da opinião que se devem reduzir os estudos das meninas a ler, escrever, contar e gramática portuguesa, porque não sei de que lhes possa servir o aprender a prática de frações, decimais e outras operações que não são usuais. Se querem que isso passe, então acrescentem [no projeto de lei] que as mestras lhes ensinem a escrituração de partidas dobradas e singelas [métodos de contabilidade]. A mulher é um ente mui diverso do homem. O que ela deve saber é o governo doméstico da casa e os serviços a ele inerentes, para que se façam boas mães de família.

A lei de 1827 também previa que as escolas femininas oferecessem aulas de prendas domésticas, como corte, costura e bordado. O projeto original, redigido pelos deputados, não continha tal disciplina prática. As prendas domésticas foram introduzidas pelos senadores — tradicionalmente mais conservadores do que os deputados. Da mesma forma, foram mudanças feitas pelo Senado na proposta inicial da Câmara que deixaram o currículo de matemática dos meninos mais longo e complexo que o das meninas.
Trechos da lei de 1827: currículo escolar mais enxuto para as meninas (imagem: Arquivo Nacional)
As escolas públicas da época não eram como as de hoje. Nos primórdios do Império, o professor dava as aulas na própria residência ou então numa casa que alugava com esse fim. Ele podia ter de alguns poucos alunos a mais de uma centena. Não havia separação por idade ou série. Os estudantes ficavam todos na mesma sala, e o professor os dividia segundo o conhecimento que tinham.

Não se fixava idade para entrar na escola. Os alunos podiam começar a qualquer momento entre os 5 e os 12 anos, conforme o desejo da família. O curso durava, em média, quatro anos. Ao fim dos estudos, para receberem o certificado, as crianças se submetiam a um exame aplicado por uma banca de inspetores do governo.

Parte pequena dos meninos continuava os estudos para chegar ao ensino superior — as duas primeiras faculdades do Brasil, as de direito de São Paulo e Olinda, foram criadas nesse mesmo ano de 1827. As meninas, por sua vez, quase nunca iam além da escola de primeiras letras.

Num discurso feito no Senado em 1826, dom Pedro I pediu aos senadores e deputados que priorizassem em seus projetos de lei “a educação da mocidade de ambos os sexos”. O Brasil havia acabado de se tornar um país independente e ainda não tinha uma rede de escolas organizada. A resposta do Parlamento viria no ano seguinte.

No Senado, o único a defender publicamente que as meninas tivessem, em matemática, um currículo idêntico ao dos meninos foi o Marquês de Santo Amaro (RJ). Ele argumentou:

 — Não me parece conforme as luzes do tempo em que vivemos deixarmos de facilitar às brasileiras a aquisição desses conhecimentos [mais aprofundados de matemática]. A oposição que se manifesta não pode nascer senão do arraigado e péssimo costume em que estavam os antigos, os quais nem queriam que suas filhas aprendessem a ler. Em todas as nações cultas se dá às meninas essa instrução e parece-me que devemos adotar essa mesma prática.
Lei educacional de 1827 foi criada a pedido de dom Pedro I (Imagem: Manuel de Araújo)
O argumento não convenceu. O Marquês de Caravelas reagiu dizendo que as “nações cultas” não podiam servir de exemplo para o Brasil:

— Diz o ilustre senador que as mulheres são dotadas dos mesmos talentos que os homens. Deve-se dar a isso algum desconto. Essa frívola mania de mulheres se aplicarem a estudos para os quais parece que a natureza não as formou, desviando-se dos verdadeiros fins para que foram criadas, é que deu motivo à comédia Les Femmes Savantes [de 1672], em que o célebre Molière ridiculariza, com sua graça costumada, essa fútil vaidade que naqueles países tem grassado entre elas.

Procurando provocar medo nos colegas, o Visconde de Cayru insinuou que os estudos poderiam até mesmo corromper as mulheres:

— Não nego que tem havido mulheres de capacidade varonil. A história tem aplaudido as Aspásias, Cleópatras, Isabéis e Catarinas, mas são raridades da espécie. Todavia, não foram famosas em moral. Modernamente têm aparecido mulheres distintas na matemática. Torno a dizer, são raridades da espécie. Tem havido mulheres que até se lançaram ao mar da política, especialmente depois da revolução da França [em 1789]. 

Não se têm visto bons resultados. Bastará nomear a famosa inglesa Mary Wollstonecraft, que fez a obra Reivindicação dos Direitos da Mulher. Ela foi condenada por adúltera. Se formos nesse andar, não causará admiração que também se requeira que as mulheres possam ir estudar nas universidades, para termos grande número de doutoras.

Ao perceber que o exemplo das “nações cultas” não estava sendo convincente, o Marquês de Santo Amaro pediu novamente a palavra e recorreu a outro raciocínio para tentar dissuadir os colegas:

— Diz-se que esses conhecimentos [de matemática] são desnecessários em uma mulher e que o essencial é que ela se forme boa mãe de família. Perguntarei agora: uma mulher nunca terá ocasião de fazer a conta de duas terças de pano que mandar comprar? Nunca terá ocasião de mandar fazer uma obra no interior da sua casa para maior comodidade ou ornato dela? E, se tiver essa ocasião, não lhe aproveitará o haver adquirido esses conhecimentos de geometria prática? A lei fica contraditória e injusta quando concede aos meninos o que nega às meninas. 
Meninas têm aula de costura na Escola Caetano de Campos, em São Paulo (Foto: Escola Normal Caetano de Campos/ CRE Mario Covas)
O senador José Ignácio Borges (PE) mudou os rumos do debate. Sem fazer comentários estereotipados e machistas a respeito das mulheres, ele apresentou um argumento de ordem prática que enterrou de vez as pretensões de quem desejava a igualdade entre os sexos nas escolas de primeiras letras do Império.

— Onde é que se hão de buscar mestras que ensinem a prática de quebrados [frações], decimais, proporções e geometria às meninas? Tenho visto o Brasil quase todo e ainda não encontrei mulher nenhuma nessas circunstâncias. Se acaso há alguma, é decerto pessoa de classe mais elevada e que não está nas circunstâncias de sujeitar-se a esse serviço. Querer imitar as nações cultas equivale a não querer que a lei se execute. Legislar assim é legislar em vão.

Borges tinha razão. Pela lei, as garotas só poderiam ter professoras. Por questões morais e religiosas, não se admitia que um homem tivesse proximidade com uma menina, nem mesmo na sala de aula. Como as garotas historicamente recebiam menos educação escolar do que os garotos, praticamente não existiam no Brasil mulheres qualificadas para ensinar aritmética e geometria nas escolas femininas.

 — Não temos mestras mulheres que possam dar essa instrução — concordou o Marquês de Caravelas. — Apareceria talvez alguma inglesa ou irlandesa, mas já passou nesta Casa o artigo que determina que só brasileiras possam ocupar esses lugares.
Meninas e meninos formavam filas separadas e estudavam em salas de aula distintas na Escola Caetano de Campos, em São Paulo (fotos: Escola Normal Caetano de Campos/CRE Mario Covas)
Encerrados os debates, a lei foi aprovada estabelecendo um currículo menor para as meninas. A unificação dos conteúdos de garotos e garotas ocorreria três décadas mais tarde, em 1854. O historiador André Paulo Castanha, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e autor de estudos sobre a educação no Império, explica:

— Hoje podemos considerar absurdo aquele tipo de debate, mas não podemos condenar os senadores. Eles foram coerentes com a realidade da época. De fato, não existiam professoras preparadas para ensinar matemática. A solução que o Parlamento deu foi a adequada para o momento. Não podemos cobrar de pessoas que viveram há quase 200 anos que pensassem como nós pensamos hoje. Estaríamos negando o processo histórico.

Debates machistas à parte, segundo Castanha, a lei de 1827 foi bastante inovadora. Além de ter criado um currículo escolar mínimo para todo o país — algo que existe até hoje —, ela marcou a entrada da mulher no mercado de trabalho, estabeleceu a exigência de concurso público para o magistério, determinou que professores e professoras recebessem o mesmo salário e fixou um piso salarial para a profissão — 200 mil réis por ano, pagos pelo governo.

Além de participarem de concurso público, os postulantes ao cargo de professor precisavam comprovar que tinham bom comportamento. No caso dos homens, a lei de 1827 exigia que não tivessem “nota na regularidade da sua conduta”. No caso das mulheres, a norma pedia “reconhecida honestidade”.
No fim do século 19, meninos fazem evolução militar em aula de ginástica (foto: Escola Normal Caetano de Campos/CRE Mario Covas)

A Constituição de 1824 determinava que o ensino primário era gratuito para todos os cidadãos. Mesmo assim, as escolas públicas do Império eram frequentadas praticamente só pelas crianças das famílias mais abastadas. Na época da lei de 1827, em torno de 12% das crianças brasileiras em idade escolar estudavam. O historiador André Paulo Castanha afirma:

— As classes populares resistiam à escola. Os pais não podiam abrir mão dos filhos das 9h às 16h, de segunda a sábado, já que as crianças ajudavam nos trabalhos de casa, em especial na lavoura. A sobrevivência falava mais alto. Além disso, as classes populares não viam a escola como elemento de ascensão social. Na época, os trabalhos eram quase todos braçais e saber ler e escrever não fazia muita diferença. Essa visão que temos hoje da educação, como a garantia de um futuro melhor, só passaria a ser explorada décadas mais tarde, já na República.

A lei educacional de 1827 foi sancionada por dom Pedro I em 15 de outubro. Pela importância da norma, a data se tornaria, em 1963, o Dia do Professor.


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