O plano era sangrar Dilma Rousseff por longos quatro anos
Fernando Horta
A direita brasileira vinha fazendo um excelente planejamento para voltar ao poder, desde 2013. Aproveitara a anencefalia dos protestos de 2013, reduzira a taxa de aprovação de Dilma Rousseff para menos da metade do que era, e direcionaram a ira do povo contra um partido. A derrota eleitoral de 2014 deveria ter sido vista como apenas um contratempo no projeto da retomada do poder.
O plano era sangrar Dilma Rousseff por longos quatro anos. A inteligência sórdida de Cunha como chefe da Câmara travava o governo, a associação com os meios de comunicação mantinha os históricos laços de controle sobre a população firmemente assentados nas mãos dos detentores do capital, e o choque internacional da economia (com redução da demanda de todos os parceiros comerciais brasileiros) fazia com que a economia brasileira sentisse demais o baque.
Cunha controlava as “pautas-bomba”, ampliando sorrateiramente o gasto do governo enquanto travava a aprovação de medidas que poderiam dar algum fôlego à Dilma. Era um torniquete a longo prazo difícil de se desvencilhar. O PT estava em alguma medida rachado, Lula se mantinha afastado do governo de Dilma, e as preferências políticas e técnicas da presidenta eleita não eram efetivamente um sucesso entre os militantes e correligionários.
Levy, Kátia Abreu, Traumann e vários outros nomes desgastavam Dilma e, ao mesmo tempo, davam munição de para Alckmin, Serra e até Aécio. Os anos dourados do governo Lula davam sinais de que haviam acabado e seria necessária uma dose imensa de carisma, capacidade política e criatividade para fazer a roda dos governos de esquerda girar novamente. Tudo o que Dilma demonstrava não dispor.
A linha auxiliar do judiciário seguia incólume e fazendo estragos. Moro, como juiz-justiceiro numa espinha dorsal composta ainda por seu amigo Gebran e Thompson Flores no TRF4, assegurava que a legitimidade das ações criminosas da célula de Curitiba seguiria intocada. No STF, a dobradinha Gilmar Mendes Dias Toffoli seguia afinada e garantia que nenhum “fogo amigo” atingisse os “amigos do rei”. Habeas Corpus, pedidos de vista, arquivamentos, dilações de prazo e toda sorte de malabarismos judiciais eram lançados para manter sob fogo cerrado os políticos da esquerda e, só os políticos da esquerda.
O alto empresariado havia cooptado o médio e pequeno, convencendo-os do engodo de que “todos tinham os mesmos interesses”, e estes eram “tirar o PT”. Sem conhecimento suficiente para compreender que o médio e pequeno empresariado vive do poder de compra da população, a histeria alucinada do anticomunismo fazia o discurso do Seu Chico, que tinha oficina mecânica para carros usados, ser o mesmo do dono da AMBEV. “Tirar o PT” e “acabar com a “mamata” eram as bandeiras que pareciam unificar os diferentes estratos da sociedade governo. Não havia nada de lógico, empírico ou real nelas, mas, controlados, os que acreditavam nestas sandices eram úteis aos planos da direita.
A estratégia era de médio a longo prazo e prometia varrer definitivamente a esquerda do poder. Com Gushiken morto, Genuíno, Dirceu e Lula acuados nas ilegalidades judiciais, o PT padecia de agilidade política, experiência e robustez de ação institucional. O governo Dilma ressentia-se de não ter mais entrada no legislativo ou no judiciário e todos os analistas previam um inverno duro para o Partido dos Trabalhadores que ainda tinha que lidar com os problemas de um partido imenso, cheio de correntes internas e que, muitas vezes, não conseguia consenso suficiente para as ações políticas requeridas nos momentos necessários.
Em março de 2017, na comemoração de aniversário de um figurão jornalista, Aécio perguntava à nata da politicagem da direita ali reunida: “Vamos abrir espaço para um aventureiro salvador da pátria?” Era a justa preocupação daquele que em não tendo a retidão moral e consciência histórica do avô, aprendeu a fazer um tipo de política “epidérmica”, que garantia insights de sobrevivência.
Aécio estava certo. E, após ser escorraçado de uma manifestação da “nova direita” na avenida Paulista, ele e o governador Alckmin devem ter sentido um frio na espinha. Haviam ido longe demais?
É fácil teorizar na vaidade de Aécio, na ganância desmesurada de Serra e no deslocamento geográfico-político de Jereissati para assumir o poder nacional, mas a verdade é que o desespero de Temer, Jucá, Eliseu Padilha, Geddel e Moreira Franco pisavam fortemente no acelerador do carro que embarcavam de carona. A trupe do PMDB não estava contemplada no planejamento a longo prazo, especialmente porque todos estavam imbricados em antigos e conhecidos escândalos de corrupção. E, se Dilma devotava seu mandato a alguma coisa, era “limpar o Brasil”. Graça Foster, na Petrobrás, foi um sinal bastante eloquente.
Além do instinto de sobrevivência do fisiologismo histórico do PMDB, o pré-Sal e o crescimento geopolítico da China jogavam mais gasolina na fogueira. Os EUA precisavam garantir um suplemento de petróleo em caso de conflito (sempre em mente) entre eles e China e Rússia. As rotas vindas do oriente médio seriam imediatamente fechadas pelos “inimigos” e a máquina de guerra americana corria o risco de ser asfixiada. A América Latina e, mais especificamente, a Venezuela, tinham que voltar a ocupar seus lugares de submissão complementar aos EUA. Lula, Chavez, Evo Morales, Rafael Correa, os Kirchner e Mujica se afinavam no discurso anti-imperialista e fechavam as portas da submissão passiva.
De repente, todos acertaram seus ponteiros no credo de que a queda de Dilma e a prisão de Lula resolveria todos os problemas. Esqueceram-se de pensar o depois. Um erro comum em todas as ações de intervenção política no século XX e XXI. Para derrubar Dilma, contudo, apenas as forças em questão pareciam não ser suficientes. O judiciário não poderia ser torcido aos interesses de Moro, Gebran e Thompson Flores sem um intenso apelo midiático. A mídia não queimaria sua imagem de “equidistância” sem a certeza de que haveria um ganho certo ao final da “missão”. Era preciso vozes nas ruas, almas e braços que se dispusessem a ir aos milhões completar a força necessária para criminalizar e afastar um projeto de governo que tinha sido só sucesso durante quase 13 anos.
O pacto desta direita liberal com os grupos neopentecostais e neofascistas, utilizando-se dos canais de comunicação destes, cumpria o papel de apressar a queda de Dilma. Contudo, estes novos grupos se contentariam com abraços e tapinhas nas costas depois do golpe concluído? Janaína Paschoal, por exemplo, faria toda a encenação jocosa da “República da Cobra” por trinta “dinheiros” e só? Alexandre Frota, Olavo de Carvalho, Kim Kataguiri, Joice Hasselmann se conformariam com o “dever cumprido”?
Era este o sentido da pergunta de Aécio.
A resposta é evidente hoje, mas também já era naquela época. Hipotecar legitimidade política da nação na mão de mentecaptos e energúmenos pode cumprir funções táticas de curto prazo, mas exige um preço impagável a longo. Toda a historiografia sobre nazismo e fascismo fazia esta advertência. Há limites civilizatórios cujo custo de ruptura é por demais alto. Nos EUA, por exemplo, os democratas não quiseram pagar. Trump governa com escândalos e mais escândalos em todas as áreas imagináveis. O impeachment é uma vaga ameaça. Do alto dos seus 243 anos de democracia, as elites econômicas e políticas de lá sabem que é melhor uma democracia ruim comandada por opositores políticos do que o autoritarismo ou o pulo no escuro da ruptura institucional.
Bolsonaro completa pouco mais de 40 dias de governo e a direita brasileira é uma terra arrasada. FHC, Serra, Alckmin, Aécio, Temer, Sarney, Renan Calheiros, Jader Barbalho e outros falam sozinhos, sem significação ou força. A cena do lançamento da candidatura de Aécio ao cargo de Deputado Federal é a síntese do que aconteceu com a direita. O preço da hipoteca institucional para prender Lula e desmantelar o governo Dilma é a morte política do liberalismo e sua substituição pelo tosco, pelo bruto, pelo incapaz e inconsequente.
Bolsonaro não tem estofo para governar, não sabe se cercar de inteligência institucional para que se possa minimamente dizer que seu governo será “ruim”. Ainda, como partícipe sujo do baixo clero por anos, suas vidraças são muito frágeis. Em trinta dias, o conglomerado de mídia e o capital tentam colocar senso no fascista, apertando os ataques sobre seu filho e as relações com corrupção e milícias. Senso este de que foi imbuído subitamente o vice Mourão. Vendo-se fiador institucional de um bando de loucos, Mourão tenta salvar sua biografia e a imagem do exército. A missão seria difícil até mesmo para uma pessoa sensata e capaz.
Em pouco mais de 40 dias, Bolsonaro demonstra a total incapacidade de governar. Seus filhos acreditam-se príncipes herdeiros, donos de uma “capacidade técnica” e conhecimento que lhes permite transitar entre várias áreas do governo, com a desenvoltura de um rinoceronte com gota. Os supostos “especialistas” conseguem ser ainda mais caricatos e incompetentes do que os membros da “famiglia”. Damares, Ernesto, Ricardo Salles e o colombiano que pensa que está numa viagem antropológica comandando a Educação do país asseguram a chance zero de qualquer coisa neste governo funcionar.
Com a direita arrasada, e o regime fascista envergonhado batendo cabeça e naufragando por completo, a esquerda se revigora. O PT segue vivo e como o maior partido de esquerda da América Latina. O PSOL se fortalece com novos e combativos nomes no Congresso. A aliança de esquerda não somente sobrevive, como se fortalece. O futuro do governo Bolsonaro é acabar na vergonha do fracasso e permitir o retorno da esquerda ou ceder a uma ditadura escancarada. Mourão é a sempre presente carta da ditadura a ser eventualmente usada.
A questão para o país é, contudo, mais importante. Se Bolsonaro não for retirado do poder, os estragos que ele fará ao Brasil são algo perto do irreparável. A destruição que ele e seus “aliados” promoveram na direita está a ponto de ser feita no país todo. O exército já percebeu que embarcou novamente num enorme erro. Vai ser fiador do fracasso histórico de Bolsonaro, e ficará pelas próximas décadas ligado a nomes como estrambólicos como Damares, Ernesto e Olavo de Carvalho.
Em 64 eles tomaram o poder com Otavio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos e Delfim Neto. É indiscutível que o atual regime não tem chance alguma de dar certo.
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